Dizem que qualquer semelhança é mera coincidência...
_ Que gente horrível! Nunca vi nada
mais feio e repugnante... Que nojo!
Essas foram as primeiras palavras do prefeito Epaminondas
ao seu assessor se referindo às pessoas que se aglomeravam na porta do Teatro
Municipal da cidade por ocasião de sua nova inauguração. Ele havia sido
destruído por um incêndio que se sabia ter sido criminoso, só não se tinha
descoberto o culpado. O assessor, falando baixo com os cantos da boca, dizia ao
prefeito que aquelas eram as pessoas que tinham doado parte de seus salários
para a reconstrução do teatro, e que agora estavam ali se sentindo glorificadas
pela ação louvável que fizeram.
_ Louvável que nada! Se deram foi
porque quiseram! Está certo que eu pedi... Mas era só não terem dado, ora! Que
culpa tenho eu de serem tão idiotas?
Dito isso, o prefeito esboçou um grande sorriso e
caminhou saudoso ao palanque montado em frente ao teatro para as celebrações
festivas do evento, demonstrando uma grande benevolência e humildade. Fogos
pipocavam no ar a todo instante, pois estava para nascer a cidade que gostasse
mais deles do que a cidade do prefeito Epaminondas. Ao subir no palanque,
cumprimentou as autoridades que lá estavam com apertos de mãos e abraços
afetuosos. A banda tocava marchas carnavalescas num ritmo alucinado e era
acompanhada por vozes que, a esta altura, já formavam uma grande multidão de
entusiastas. Ao sinal do chefe do cerimonial, fez-se silêncio e todos se
postaram dignamente para a execução do Hino Nacional que foi exibido com clamor
e patriotismo efervescentes. Após o hino, o prefeito se dirigiu ao microfone e,
visivelmente emocionado, começou a proferir um discurso eloquente e comovido:
_ Caríssimos e amados concidadãos,
povo da minha terra e orgulhos da nação! Hoje é um dia muito especial para
todos nós. Hoje, o dia em que reinauguramos o Teatro Municipal de nossa cidade
e que, a partir de agora, passa a se chamar Teatro Grande Rei, venho até vocês
dizer que, mais do que feliz, estou comovido... Sinto-me profundamente
realizado em poder administrar uma cidade repleta de verdadeiros seres humanos
dignos e honrados como vocês. O nome Grande Rei é uma homenagem a vocês,
compatriotas, sangue do meu sangue, meus irmãos, que me fizeram sentir como um
verdadeiro rei nesses quatro anos de governo, graças ao amor radiado por seus
corações... Hoje lhes entrego o Teatro Grande Rei, não por questões políticas,
mas por respeito. As eleições que se aproximam nada significam perante a
magnitude deste acontecimento que tenho o prazer de compartilhar com todos
vocês... Aqui neste teatro, onde reina e floresce a arte, brilhará mais uma vez
a encenação da vida que tem como artistas principais as nossas famílias, as
nossas crianças, os nossos idosos, enfim, todos vocês que conduzem a história
do nosso país...
A multidão estourou em gritos de vivas! Senhores, senhoras e crianças era uma
alegria só! A banda voltou a tocar ainda mais afinada e a festa era geral. O
prefeito tirou do paletó um lencinho bordado com as iniciais G.R e enxugou,
comovido, uma lágrima no canto do olho. Acenava para a multidão e postava as
mãos como em oração contida. Porém, no meio daquela euforia, adiantou-se para
perto do palanque um rapaz de chapéu e sandálias, vestido com uma roupa simples
e segurando, com uma das mãos, um galho de goiabeira. Ao chegar próximo do
prefeito, apontou com o galho o ostentoso teatro e bradou corajosamente:
_ OLHA A BUNDA BRANCA DO REI! OLHA A
BUNDA BRANCA DO REI!
Se o silêncio tivesse rosto sem
dúvida alguma aquele foi o dia de sua contemplação... Todos se calaram juntos
como que por magia. Os senhores ficaram atônitos sem saberem o que fazer; a
banda não mais tocava; as senhoras tapavam os ouvidos das crianças e, depois de
alguns longos segundos, a gritaria recomeçou, mas agora eram protestos que se
ouviam contra o rapaz que continuava bradando loucamente:
_ OLHA A BUNDA BRANCA DO REI! OLHA A
BUNDA BRANCA DO REI!
Ao primeiro sinal de linchamento por
parte da multidão em relação ao desordeiro, o prefeito interveio pacientemente:
_ Calma, meu povo, calma... Não façam nada contra este
pobre rapaz... Afinal, todos têm o direito de se pronunciar! Antes de
condenarmos sua atitude, veremos o motivo de sua... hã... bem, abundante coragem e indignação...
Os aplausos eram cada vez mais
comovidos diante da bondade e profunda ponderação do prefeito. Um pequeno grupo
ensaiou uma torcida que foi logo adotada por todos. Glorificavam-se aos gritos
de “Viva Epaminondas! Viva o nosso prefeito!” O prefeito fez um sinal ao povo
que se calou e, dirigindo a voz para o rapaz, pigarreou antes de perguntar:
_ Vamos, meu filho, diga para todos nós: que bunda é
essa?
O rapaz apontou novamente para o Grande Rei:
_ Essa que o senhor desenhou aí na
parede do teatro, ó!
As pessoas se entreolharam e os
fuxicos começaram. Duas senhoras bem vestidas e aparentando uma grande
dignidade cristã, se perguntaram num sussurro:
_ Você está vendo ali alguma nádega?
_ Não, e você está?
_ Claro que não! Cruzes Ave Maria...
E faziam, horrorizadas, o sinal da
cruz. O prefeito mais uma vez se dirigiu ao rapaz:
_ Você não está de brincadeira comigo, está? Não tem
bunda nenhuma ali, meu jovem! De onde você tirou essa ideia absurda?
_ Desculpe prefeito... Mas tem sim... E, ó, tá apontada
diretinha, diretinha pra cá!
O prefeito, por fim, começou a se
impacientar e tentava, com algum sucesso, encobrir o seu desconcerto.
_ Escute aqui... Se você continuar
com essa ideia indecente, serei obrigado a tomar uma atitude, entendeu?
_ Isso... Está começando a colocar as manguinhas de fora,
não, é? Por que o senhor não vai desenhar mais dessas coisas por aí? Essa já é
suficiente, não é mesmo? Também pudera! Com esse tamanho todo, parece até a da
Eufrosina!
A esta altura, muitas pessoas que se encontravam no meio
da multidão, não aguentando mais, desataram a rir. Eram pessoas que estavam se
prendendo por estarem ao lado de suas esposas que, ao desprendimento dos
maridos, aprontaram o que pode se chamar de um furacão... O que se via e ouvia
eram gritos de protestos, bolsas e sombrinhas voando para todos os lados, risos
e gozações, tapas, enfim, um fuzuê dos diabos. Ninguém mais ouvia os chamados
inflamados do prefeito pedindo silêncio que, pelo andar da carruagem, perdera
as estribeiras. Até a Eufrosina, muito bem lembrada por sua deformidade traseiral,
subiu ao palanque sem se dar conta do prefeito que não passava, àquela altura,
de um “comum” frente ao circo armado. Eufrosina dizia, aos berros, que queria
ser indenizada por terem lhe roubado o traseiro sem pedir permissão. Dizia que
ele só era usado quando devidamente pago pelos maridos que ali estavam, e
começou a aponta-los desavergonhadamente um por um. Algumas mulheres, vendo
aquilo, desmaiavam; outras, mais donas, batiam nos maridos e o prefeito nada
mais fazia, só olhava furioso para o rapaz que se mantinha indiferente e
absorto perante a confusão que armara. Até o padre Silvestre, muito respeitado
na cidade, apareceu e também subiu ao palanque:
_ Calma, meus filhos, calma! Não há motivo para tamanha
desordem! Jesus Cristo disse: “Respeitai-vos uns aos outros”! Vamos dar razão a
essas nobres palavras, por favor, por favor!
Às palavras do padre, a multidão foi
se aquietando e, quando ficaram em silêncio, o padre continuou:
_ Bem, agora que estamos todos calmos, vamos por parte...
De quem é a nádega?
_ “Da Eufrosina! Do prefeito! Do rei, do rei! É do senhor
mesmo, padre Silvestre”!
A gritaria recomeçou. E agora ninguém
mais fazia o povo calar. Vozes vinham de toda parte. O padre estava indignado
por ter sido dado como dono daquele objeto repugnante... A Eufrosina estava
indignada por terem lhe roubado as partes, as mulheres estavam indignadas pela
traição dos maridos, os homens estavam indignados pela submissão revelada
publicamente às mulheres alheias. Só o rapaz, que tudo começou, se mantinha
calmo, e o prefeito, paralisado, furioso. Ao sinal desse, ressoou no ar tiros
de escopetas dados pelos policiais que se encontravam, até então, ao lado do
prefeito sem nada fazer. A multidão, assustada, começou a dispersar em gritos
de horror. Foi uma correria medonha... Uns trombavam com outros, caiam, se
levantavam, corriam outra vez, se escondiam, e ninguém se dava conta das
mulheres e das crianças. Era cada um por si e Deus pra todos... Essa grande
confusão ainda continuou por alguns minutos até que, aos poucos, as ruas foram
se esvaziando. Quando finalmente cessou e não se encontrava nenhuma alma viva
por onde quer que se olhasse, o prefeito viu, andando tranquilamente e já indo
longe, somente o rapaz rodando na mão o galho de goiabeira. Neste instante,
chamou o seu assessor e, ao pé do ouvido, se referindo ao rapaz que já virava a
esquina das ruas agora calmas da cidade, segredou:
_ Sabe o que fazer. Apenas um susto... E não se esqueça
de lhe enviar um telegrama junto com um santinho
em meu nome demonstrando os meus sentimentos e preocupações...
_ Sim, senhor.
Dizendo
isso, o prefeito desceu do palanque, entrou no carro que já o aguardava e
foi-se embora enquanto a noite caia linda e silenciosa banhando as paredes
magníficas do Grande Teatro que, intocável e poderoso, dormia sem se preocupar.