sábado, 23 de agosto de 2014

O Grande Teatro





Dizem que qualquer semelhança é mera coincidência...

            _ Que gente horrível! Nunca vi nada mais feio e repugnante... Que nojo!

            Essas foram as primeiras palavras do prefeito Epaminondas ao seu assessor se referindo às pessoas que se aglomeravam na porta do Teatro Municipal da cidade por ocasião de sua nova inauguração. Ele havia sido destruído por um incêndio que se sabia ter sido criminoso, só não se tinha descoberto o culpado. O assessor, falando baixo com os cantos da boca, dizia ao prefeito que aquelas eram as pessoas que tinham doado parte de seus salários para a reconstrução do teatro, e que agora estavam ali se sentindo glorificadas pela ação louvável que fizeram.
            _ Louvável que nada! Se deram foi porque quiseram! Está certo que eu pedi... Mas era só não terem dado, ora! Que culpa tenho eu de serem tão idiotas?
            Dito isso, o prefeito esboçou um grande sorriso e caminhou saudoso ao palanque montado em frente ao teatro para as celebrações festivas do evento, demonstrando uma grande benevolência e humildade. Fogos pipocavam no ar a todo instante, pois estava para nascer a cidade que gostasse mais deles do que a cidade do prefeito Epaminondas. Ao subir no palanque, cumprimentou as autoridades que lá estavam com apertos de mãos e abraços afetuosos. A banda tocava marchas carnavalescas num ritmo alucinado e era acompanhada por vozes que, a esta altura, já formavam uma grande multidão de entusiastas. Ao sinal do chefe do cerimonial, fez-se silêncio e todos se postaram dignamente para a execução do Hino Nacional que foi exibido com clamor e patriotismo efervescentes. Após o hino, o prefeito se dirigiu ao microfone e, visivelmente emocionado, começou a proferir um discurso eloquente e comovido:
            _ Caríssimos e amados concidadãos, povo da minha terra e orgulhos da nação! Hoje é um dia muito especial para todos nós. Hoje, o dia em que reinauguramos o Teatro Municipal de nossa cidade e que, a partir de agora, passa a se chamar Teatro Grande Rei, venho até vocês dizer que, mais do que feliz, estou comovido... Sinto-me profundamente realizado em poder administrar uma cidade repleta de verdadeiros seres humanos dignos e honrados como vocês. O nome Grande Rei é uma homenagem a vocês, compatriotas, sangue do meu sangue, meus irmãos, que me fizeram sentir como um verdadeiro rei nesses quatro anos de governo, graças ao amor radiado por seus corações... Hoje lhes entrego o Teatro Grande Rei, não por questões políticas, mas por respeito. As eleições que se aproximam nada significam perante a magnitude deste acontecimento que tenho o prazer de compartilhar com todos vocês... Aqui neste teatro, onde reina e floresce a arte, brilhará mais uma vez a encenação da vida que tem como artistas principais as nossas famílias, as nossas crianças, os nossos idosos, enfim, todos vocês que conduzem a história do nosso país...
                A multidão estourou em gritos de vivas! Senhores, senhoras e crianças era uma alegria só! A banda voltou a tocar ainda mais afinada e a festa era geral. O prefeito tirou do paletó um lencinho bordado com as iniciais G.R e enxugou, comovido, uma lágrima no canto do olho. Acenava para a multidão e postava as mãos como em oração contida. Porém, no meio daquela euforia, adiantou-se para perto do palanque um rapaz de chapéu e sandálias, vestido com uma roupa simples e segurando, com uma das mãos, um galho de goiabeira. Ao chegar próximo do prefeito, apontou com o galho o ostentoso teatro e bradou corajosamente:
            _ OLHA A BUNDA BRANCA DO REI! OLHA A BUNDA BRANCA DO REI!
            Se o silêncio tivesse rosto sem dúvida alguma aquele foi o dia de sua contemplação... Todos se calaram juntos como que por magia. Os senhores ficaram atônitos sem saberem o que fazer; a banda não mais tocava; as senhoras tapavam os ouvidos das crianças e, depois de alguns longos segundos, a gritaria recomeçou, mas agora eram protestos que se ouviam contra o rapaz que continuava bradando loucamente:
            _ OLHA A BUNDA BRANCA DO REI! OLHA A BUNDA BRANCA DO REI!
            Ao primeiro sinal de linchamento por parte da multidão em relação ao desordeiro, o prefeito interveio pacientemente:
            _ Calma, meu povo, calma... Não façam nada contra este pobre rapaz... Afinal, todos têm o direito de se pronunciar! Antes de condenarmos sua atitude, veremos o motivo de sua... hã... bem, abundante coragem e indignação...
            Os aplausos eram cada vez mais comovidos diante da bondade e profunda ponderação do prefeito. Um pequeno grupo ensaiou uma torcida que foi logo adotada por todos. Glorificavam-se aos gritos de “Viva Epaminondas! Viva o nosso prefeito!” O prefeito fez um sinal ao povo que se calou e, dirigindo a voz para o rapaz, pigarreou antes de perguntar:
            _ Vamos, meu filho, diga para todos nós: que bunda é essa?
            O rapaz apontou novamente para o Grande Rei:
            _ Essa que o senhor desenhou aí na parede do teatro, ó!
            As pessoas se entreolharam e os fuxicos começaram. Duas senhoras bem vestidas e aparentando uma grande dignidade cristã, se perguntaram num sussurro:
            _ Você está vendo ali alguma nádega?
            _ Não, e você está?
            _ Claro que não! Cruzes Ave Maria...
            E faziam, horrorizadas, o sinal da cruz. O prefeito mais uma vez se dirigiu ao rapaz:
            _ Você não está de brincadeira comigo, está? Não tem bunda nenhuma ali, meu jovem! De onde você tirou essa ideia absurda?
            _ Desculpe prefeito... Mas tem sim... E, ó, tá apontada diretinha, diretinha pra cá!
            O prefeito, por fim, começou a se impacientar e tentava, com algum sucesso, encobrir o seu desconcerto.
            _ Escute aqui... Se você continuar com essa ideia indecente, serei obrigado a tomar uma atitude, entendeu?
            _ Isso... Está começando a colocar as manguinhas de fora, não, é? Por que o senhor não vai desenhar mais dessas coisas por aí? Essa já é suficiente, não é mesmo? Também pudera! Com esse tamanho todo, parece até a da Eufrosina!

            A esta altura, muitas pessoas que se encontravam no meio da multidão, não aguentando mais, desataram a rir. Eram pessoas que estavam se prendendo por estarem ao lado de suas esposas que, ao desprendimento dos maridos, aprontaram o que pode se chamar de um furacão... O que se via e ouvia eram gritos de protestos, bolsas e sombrinhas voando para todos os lados, risos e gozações, tapas, enfim, um fuzuê dos diabos. Ninguém mais ouvia os chamados inflamados do prefeito pedindo silêncio que, pelo andar da carruagem, perdera as estribeiras. Até a Eufrosina, muito bem lembrada por sua deformidade traseiral, subiu ao palanque sem se dar conta do prefeito que não passava, àquela altura, de um “comum” frente ao circo armado. Eufrosina dizia, aos berros, que queria ser indenizada por terem lhe roubado o traseiro sem pedir permissão. Dizia que ele só era usado quando devidamente pago pelos maridos que ali estavam, e começou a aponta-los desavergonhadamente um por um. Algumas mulheres, vendo aquilo, desmaiavam; outras, mais donas, batiam nos maridos e o prefeito nada mais fazia, só olhava furioso para o rapaz que se mantinha indiferente e absorto perante a confusão que armara. Até o padre Silvestre, muito respeitado na cidade, apareceu e também subiu ao palanque:
            _ Calma, meus filhos, calma! Não há motivo para tamanha desordem! Jesus Cristo disse: “Respeitai-vos uns aos outros”! Vamos dar razão a essas nobres palavras, por favor, por favor!
            Às palavras do padre, a multidão foi se aquietando e, quando ficaram em silêncio, o padre continuou:
            _ Bem, agora que estamos todos calmos, vamos por parte... De quem é a nádega?
            _ “Da Eufrosina! Do prefeito! Do rei, do rei! É do senhor mesmo, padre Silvestre”!
            A gritaria recomeçou. E agora ninguém mais fazia o povo calar. Vozes vinham de toda parte. O padre estava indignado por ter sido dado como dono daquele objeto repugnante... A Eufrosina estava indignada por terem lhe roubado as partes, as mulheres estavam indignadas pela traição dos maridos, os homens estavam indignados pela submissão revelada publicamente às mulheres alheias. Só o rapaz, que tudo começou, se mantinha calmo, e o prefeito, paralisado, furioso. Ao sinal desse, ressoou no ar tiros de escopetas dados pelos policiais que se encontravam, até então, ao lado do prefeito sem nada fazer. A multidão, assustada, começou a dispersar em gritos de horror. Foi uma correria medonha... Uns trombavam com outros, caiam, se levantavam, corriam outra vez, se escondiam, e ninguém se dava conta das mulheres e das crianças. Era cada um por si e Deus pra todos... Essa grande confusão ainda continuou por alguns minutos até que, aos poucos, as ruas foram se esvaziando. Quando finalmente cessou e não se encontrava nenhuma alma viva por onde quer que se olhasse, o prefeito viu, andando tranquilamente e já indo longe, somente o rapaz rodando na mão o galho de goiabeira. Neste instante, chamou o seu assessor e, ao pé do ouvido, se referindo ao rapaz que já virava a esquina das ruas agora calmas da cidade, segredou:
            _ Sabe o que fazer. Apenas um susto... E não se esqueça de lhe enviar um telegrama junto com um santinho em meu nome demonstrando os meus sentimentos e preocupações...
            _ Sim, senhor.
            Dizendo isso, o prefeito desceu do palanque, entrou no carro que já o aguardava e foi-se embora enquanto a noite caia linda e silenciosa banhando as paredes magníficas do Grande Teatro que, intocável e poderoso, dormia sem se preocupar.