sábado, 22 de fevereiro de 2014

Entrelinhas - Espelhos


Ele havia lido em um livro de Mia Couto um diálogo que o impressionou bastante:
            _ Pai, a mãe morreu?
            _ Quatrocentas vezes.
            _ E ela está enterrada onde?
            _ Ora, em toda parte.*
            Ficou imaginando como isso seria possível. Quatrocentas partes de sua mãe em quatrocentos lugares diferentes... Isso, além de impossível era grotesco e logo desviou seu pensamento para algo que lhe parecia mais apropriado: se a lei da reencarnação estivesse certa, estaria explicada a questão..., mas não acreditava nisso; sua igreja não permitia, e era isso para ele muito mais cômodo, pois evitava mirar os espelhos de sua alma. Porém, nada disso teria importância se uma profunda sensação de estar incompleto não persistisse em sua vida, como se os mesmos espelhos, estando a quebrar, lançassem seus cacos a refletir tempos escusos, o que trouxe ainda mais angústia pois, a partir daquele momento, pôs-se a procurar por ele mesmo.

* Antes de nascer o mundo – Mia Couto.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Entrelinhas - O verdadeiro homem de bem

Francisco levantava cedo todos os dias. Camponês, tirava o leite e servia, ele mesmo, todas as pessoas da casa. Lavava-lhes os pés quando chegavam do trabalho e todas as coisas dessa ordem, mas, nem por isso, se sentia bom. Aliás, nem ao menos era querido, pelo contrário, Francisco era constantemente maltratado, o que deixava surpreso um primo seu distante da cidade que um dia chegou em sua casa. Filósofo, era versado nas letras e nas ciências e se achava sábio. Naquela visão que teve à qual chegou o primo Francisco acerca de sua humildade suprema, fez-lhe esta pergunta: “Meu caro, como pode servir-lhes com tamanha benevolência se o ignoram tanto? Deve doer-lhe a ignorância, pois, se fosses sábio como eu, certamente não teria essa vida”. Ao que Francisco respondeu: “Se tivesse sido favorecido com a sua ciência estou certo de que teria ido embora dessas terras, o que representaria o fim dessa boa gente, pois não sabem sequer cuidar de si mesmos”. “Mas – replicou o primo sábio – como pode chamar de boa gente esses outros que lhe maltratam?” Ao que Francisco respondeu novamente, porém com outra pergunta: “E quem disse que se esses outros, como os chamam, tivessem sido agraciados com a misericórdia, não fariam mais do que eu?” E foi assim que o camponês, mediante aquelas respostas e com toda a força de sua humildade, passou a ensinar o primo sábio que, aliando a sua ciência ao espírito de servir, começou a se formar num verdadeiro homem de bem.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Entrelinhas - A Passagem

          Um dia um pescador saiu para pescar. Levantou mais cedo que os outros e foi para o rio. Lá, desembainhou o facão e desvestiu a pele de seu corpo se jogando na água. Assim que seu corpo sem pele tocou a água, ele se transformou em um peixe lindo que encantou os outros peixes conduzindo-os às redes dos outros pescadores que, a essa altura, já estavam armadas. No final do dia, e já em forma de homem, voltou para casa levando um único peixe, diferente dos demais que voltaram com as redes cheias. Com o tempo, seu filho foi achando aquilo estranho, mas era só ouvir as algazarras dos meninos que logo esquecia e ia brincar com as outras crianças.
            Um dia o rapaz acordou mais cedo que o pai. Esperou que este saísse e o seguiu presenciando o que ele fazia. Naquele dia o pai não mais voltou para casa. Os pescadores também não levaram peixe algum. Assim foram todos os outros dias que se seguiram até que o rapaz, que havia mantido silêncio, fez o que precisava: levantou cedo e foi para o rio procurar o pai. Ao chegar, o viu de costas na margem da água parecendo que o esperava.
            _ Você descobriu... Agora terá que tomar o meu lugar.
            _ E se eu não quiser pai?
            _ Todos morrerão de fome. Nós dois sabemos que não há escolha.
            Desembainhou o facão e um grito de pânico se fez ouvir. O rapaz sentou na cama se sentindo completamente ofegante e suado...
            _ Pesadelo, filho?
            _ Sim, Eu...
            _ Já não era sem tempo... Levante-se! Hoje você vai pescar comigo.
            Um medo terrível o assolou e ele fez a mesma pergunta do sonho:
            _ E se eu não quiser pai?
          _Nós dois sabemos que não há escolha... Eu vi como ontem você não quis brincar com as outras crianças...
         O tempo havia chegado... E foi assim que a passagem de sua infância se deu como uma lâmina a desvestir o seu corpo e expor a sua alma. Era o que pensava lembrando-se do pai enquanto ele, agora homem feito, olhava o filho que dormia parecendo que sonhava...

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