quarta-feira, 18 de junho de 2014

A Campa Viva

A morte andava a ser íntima daquela família. Exercia-se com dedicação e visitava-a de quando em sempre sem um minuto de trégua. Instalava-se sem alvoroço, sem choro, o que era pior. É na quietude e no silêncio que os vermes trabalham e a pior morte é a que acontece ainda em vida bem aos poucos e devagar. Já não conversavam, apenas suportavam as lembranças de bons dias existentes apenas em sonhos que aceleravam ainda mais o sofrimento da perda do que nunca tiveram e o desejo de que fosse física a empreitada; mas não: era na alma, sem anteparos. A mãe cozinhava para matar a fome; o pai trabalhava para matar o tempo; os filhos morriam um pouco por dia a cada minuto à medida que cresciam, e tudo era silêncio. Assim, enquanto os dias se entrelaçavam com as noites – campa preferida dos mortos – o pai chamou um dos filhos, o mais velho, e quebrando o silêncio disse apontando a terra magra e sofrida em que viviam ao cair de uma das tardes: “Vês? Ninguém assiste ao funeral, grande enterro do dia. Por isso a morte nos espreita e nos é companheira inseparável”. Aproveitando a rara chance da conversa, o menino amiudado arriscou uma pergunta:
_ Pai, por que não vamos embora daqui? Levamos a mãe e os irmãos.

            E a resposta veio fria, como não podia deixar de ser: “Porque já fomos há muito tempo...”

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Entrelinhas - 12 de junho

Apresentou-se ao marido de manhã com uma decisão tomada:
_ Quero me descasar com você.
A sentença seca e inesperada fez com que Eduardo fingisse demorar-se numa risada incrédula, porém nervosa. Tal atitude era a tentativa de defender-se daqueles olhos órfãos de carinho que o miravam profunda e serenamente.
_ O que está querendo dizer? – indagou ainda na retaguarda já imaginando dissabores.
_ O que você ouviu. Quero me descasar.
Num instante se lembrou do que vinha acontecendo, ou melhor, do que não vinha acontecendo em suas vidas, do tanto que estavam distantes – quase dois estranhos dentro de casa e fora dela – e sabia que isso, um dia, pediria enfretamento. Mas assim, sem avisar? Logo o ego-semprismo compareceu à inesperada reunião trazendo o costumeiro ataque e, sem esperar ou sequer tentar mudar os óculos, lançou a pergunta:
_ Existe outra pessoa?
_ Sim.
O Chão parecia ter sido tirado de seus pés. Seu corpo todo tremeu, seus olhos embaçaram e, sentando para disfarçar o indisfarçável, quis saber quem era. A esposa, sem contra-ataques, mantendo a serenidade no rosto e até um carinho nos olhos, disse pausadamente como se estivesse lendo uma missiva: que era alguém que a entendia, que era capaz de adivinhar seus pensamentos e desejos antes mesmo de os terem, que entendia que nada estava garantido e que, por isso, a enxergava e a cuidava como uma preciosidade que não queria perder, ocupando, assim, o seu lugar em seu coração; uma pessoa, enfim, que a fazia sentir o lado prazeroso e leve do encontro.
Parecia não acreditar no que ouvia. Os sentimentos se misturavam entre a cólera e o desespero. Num impulso, bateu com os punhos na cama gritando para aliviar o que o explodia:
_ O nome! Diga-me o nome!
A mulher, já com as lágrimas nos olhos que insistiam em demonstrar afetos, respondeu ao marido deixando-se chorar:
_ Eduardo.
Ao dizer o seu nome, tirou de baixo do travesseiro uma folhinha de calendário e o entregou. Nela estava a data bem marcada de vermelho: 12 de junho, dia dos namorados...

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Entrelinhas - Crescer

O choro era sentido. Estava a descobrir perdas. Pela primeira vez se deparava com uma despedida tão de perto. As lágrimas reprimidas pelos pais tentando descontrações teimavam em desobedecer e caíam silenciosas à espera do que parecia inevitável. O animalzinho respirava lentamente e já não abria os olhos. A menina de 9 anos viu a mãe cuidar do bichinho e o colocar numa caixa protegido de cuidados. A noite já avançava e amanhã era dia de escola. Foi até lá uma última vez e balbuciou algumas palavras – uma despedida, talvez? – e correu para o seu quarto. Enquanto se recolhia em sua pequena dor, a vida lhe escrevia mais uma página de crescimento...