Maternidade era uma das palavras
esquecidas no seu dicionário. Era fácil demais para algumas pessoas pensar
nisso, não para ela, de corpo perfeito e vida em liberdade. Por isso, seu
ventre crescido estava na contra mão de todos e recordava sua rejeição. Daquele
invólucro perfeito ficariam cicatrizes, marcas que sobreporiam ao efemeramente
físico e atingiriam sonhos interrompidos. Dejanira era mulher do mundo; este
era o seu resguardo que nunca pensou em abandonar, nem sequer substituí-lo por
um momento que fosse. Sentia-se sem vida, apesar da vida que crescia dentro de
si e, mesmo sendo agora duas, teimava-se em sua solidão. O tempo passava, mas
não levava a angústia que aumentava a cada dia que a circunscrição de seu
estado apontava. Já dividia seu alimento sem sua permissão; como seria dividir
o resto? Era o que pensava desolada e inquieta. Só havia um jeito: acabar logo
com aquilo. Porém, o feto crescido já era uma criança e, antes mesmo de pensar
em qualquer outra coisa, de seu corpo redondo começou a emergir um líquido que,
ao rebentar da bolsa, jorrou junto uma sensação indefinível que a urgência do
momento não permitiu reflexões. Elas só vieram quando, já com a criança liberta
deitada em seu peito em meio aos médicos, começou a cantarolar uma cantiga de
ninar no mesmo momento em que seus seios saciavam o filho que calava a ouvir.
Seus olhos recém maternos se iluminavam, o coração que antes rejeitava agora
acalentava e punha-se a descobrir uma desconhecida impressão felina e protetora.
A mulher do mundo sem fronteiras não sabia se o choro convulso que irrompia
naquele instante era amor ou remorso, talvez os dois. Aquele momento eternizado
na música que embalava sua criança, fazia-se pensar: afinal, é a mãe que dá a
luz ao filho ou é o filho que faz nascer a mãe?
terça-feira, 27 de maio de 2014
sábado, 24 de maio de 2014
Entrelinhas - Dia dos meus anos
Era num sonho que esforçava-me para
acordar. A pureza das flores emprestava ao féretro suas pétalas macias naquela
estranha combinação de beleza e dor. O tempo passava simbolizando perdas à
medida que eu crescia. Buscava na alma em frangalhos alguma coisa que pudesse
sustentar o que o medo já corroía e fui encontrá-la na poesia nas palavras de
Henriqueta. Outra vez Henriqueta... Enquanto contemplava a pálida infância
interrompida em meio a flores, os versos pululavam em minha cabeça me mostrando
caminhos: “por que tantos soluços? É uma criança. Brincou e adormeceu...” Só
isso! Tão simples; tão verdadeiro! Até diria... Tão belo. Sim, tragam-me flores
as outras crianças e dancemos a morte que renasce. Acordei...
sexta-feira, 9 de maio de 2014
Entrelinhas - Autorretrato
Vivia em versos quando a criança que eu havia
sido residia em mim sem medo de se mudar. Vibrava quando Deus tocava tambores
no céu, anunciando a festa das águas que viria lavar a terra. Nessas ocasiões,
construía imensos navios e me colocava a deslizar com eles pelas encostas das
esquinas e tudo eram sonhos de papel que naufragavam na mesma proporção dos
aniversários que fazia. A vida tinha um sabor peculiar, adocicado por completo,
bem diferente do agridoce inicial e do azedume final que não me permitia
entender o porquê da desesperança amarga dos mais velhos. Logo percebi que os
sabores nos ensinam onde a vida está ancorada...
Que saudades do tempo onde os muros dos
jardins nos protegiam lá de fora e de quando a ameixeira em matrimônio com a
goiabeira sustentava em seus galhos entrelaçados o meu peso irrisório de
criança, “com leveza de zéfiro levantando cortinas”, enquanto a Henriqueta
irrequieta germinava para mim e em mim em estado de poesia.
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