sábado, 13 de setembro de 2014

Abandono

Depois daquele dia foi a primeira vez que ela entrou no quarto do filho. Acariciou suas poucas roupas que lhe sobraram da infância perdida no abandono e ficou nesta tarefa por horas, até as lágrimas banharem seu rosto que trazia do coração o entendimento de que já não havia mais tempo...

            Ajuntou ele mesmo as tábuas uma a uma. Crivou-as de pregos, reforçando bem o fundo que o sustentaria, ou melhor, que sustentaria sua inexistência. A morte ganhava contornos vivos e tudo era assim: estranho. Queria inexistir, pois assim era lembrado; assim era com todos que morriam. Um dia, feito o caixão, organizou cuidadosamente suas lembranças – cartas, fotografias, memórias de criança – dentro dele, sem se esquecer do que mais lhe afligia: seu presente. Tudo deposto na estranha padiola, pôs-se a escavar lentamente como quem sorve cada pá de terra, extasiado em sua própria ação de (a)sumir. Ao vê-lo abrir a terra, a mãe não sustentou a capacidade da ausência que lhe infligiu na vida e o percebeu tarde demais...
            _ O que está fazendo?
            E a resposta veio fria. Rígida.
            “Estou a enterrar a mim”.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O velho que consertava coisas


Gosto muito dos velhos que consertam coisas. Eu mesmo tive um tio assim. Consertava tudo. Uma vez pegou uma lâmpada incandescente queimada no lixo, emendou seu filamento e o pequeno bulbo de luz nunca mais deixou de acender. Osmânio era um velho como ele: consertava ferros, rádios, relógios de corda, chuveiros, televisões velhas... Mas o que ele mais sabia consertar eram sentimentos... Não havia um só casal que se estivesse a ponto de separação, Osmânio não os unia; O que falar das brigas entre irmãos, pais, mães? Até os animais pareciam respeitar o dom reparador que vinha das mãos daquele velho, e a braveza instintiva se transformava em mansidão quando estavam em sua presença, e os alaridos viravam sons de passarinhos, assim como as flores floresciam mais e os aromas ficavam ainda mais cheirosos. Osmânio era assim; consertava corações. Mas apesar de tanto talento naquelas mãos, a tristeza não se apartava de seus olhos. Camuflava-se aos sorrisos tímidos daquele jeito misturado de sentimentos. E isso por uma simples razão: Osmânio era homem e, como tal, havia amado, e muito, uma mulher que, agora, existia apenas em seu passado. Ninguém nunca soube quem era de fato ou o que aconteceu para ela não ter envelhecido com ele. O que todos sabiam era que Osmânio, o velho que consertava corações, nunca havia consertado o seu...