sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Inexistência



Voltava ali todos os dias para ouvir os silêncios daquelas gentes que não mais povoavam os corredores escuros daquela casa. Minha memória divagava, mas ainda recordava ter vivido as belas tardes de domingo, os almoços com a família, a presença dos amigos, das tias velhas, das primas mal crescidas, as canções tiradas ao violão inebriando saudades que viriam. Tudo se esvaía como fumaça, não do caldeirão usado para esquentar o “cumezim”, mas do pó de ossos de minhas lembranças. Voltava ali todos os dias a cercear saudades. Mas... A casa vazia e largada se enche de vozes e tudo se estraga. Quero o silêncio, mas ele se quebra pelas tão dolorosas vozes que não se escutam pelos ouvidos, mas pelos olhos. Tapei-os na esperança de expulsá-las no instante em que elas brincavam de ciranda em torno de mim, acordando imagens já completamente livres, risonhas e nuas, quase pornográficas; imagens vivas de coisas mortas e pessoas em estado de adeus. Assim, de olhos fechados, já não ouvia palavras e era assim que eu gostava, era assim que eu me acalmava, pois o silêncio me chamava e era por ele que estava a visitar sempre aquele lugar. Mas algo estranho aconteceu: passei eu a ser o silêncio daquela casa, que já não era mais casa, mas uma campa, onde passei a morar como se não existisse...

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Noturnos



Os tempos difíceis, a tristeza n’alma como se a noite fosse toda ela presença que se agarra nas lembranças que não querem mais se esquecer. Os Noturnos, belos e profundos como o oceano de nós mesmos, cedem à melancolia cadenciada harmonia de seus dedos correndo soltos pelas teclas que já são, por si, a dicotomia entre o claro e o escuro de nossas estranhas escolhas que tendem a nos embalar pelos sonhos que insistimos em ter. O menino que usava as noites para se iluminar, como os vagalumes, era o contrário dos adultos que o rodeavam e que sempre o tinham como um sonhador. Indagado sobre esse seu comportamento, o pequeno pianista interrompia em breves segundos sua lição para responder: “O problema não é sonhar; o problema é sempre recordar o que não se sonhou...” E mais uma nota soava em noites que se completavam no vazio. Como é bom o desencher.